Especificamente no Brasil, o maior fator de risco para alguém desenvolver declínio cognitivo — que faz parte do quadro de demência — não é a idade avançada, e sim a falta de acesso à educação. É o que afirma um estudo inédito feito por pesquisadores brasileiros e publicado nessa quarta-feira (29) na revista científica “The Lancet”, uma das principais do mundo.
Qual é a principal conclusão? Aqui no país, a escolarização (ou seja, por quantos anos a pessoa estudou ao longo da vida) mostrou-se o elemento mais determinante no processo de envelhecimento cerebral (entenda mais abaixo).
Para os cientistas chegarem a esse resultado, foram analisados dados de 41 mil pessoas na América Latina: tanto do mesmo grupo econômico do Brasil, como Colômbia e Equador, quanto de nações que estão um degrau acima do nosso nos critérios do Banco Mundial (caso do Chile e do Uruguai).
Nas regiões mais pobres, a disparidade social e os problemas nos sistemas de educação e de saúde aumentam a probabilidade de alguém desenvolver demência. Já entre os mais ricos, fatores demográficos têm maior “peso”.
O que é demência? É uma condição crônica progressiva (ou seja, piora com o tempo) que afeta funções cerebrais importantes, como a memória, o raciocínio e a linguagem. Apesar de poder ser tratada, não tem cura. Entre os sintomas, estão: dificuldade de se lembrar de fatos recentes ou de palavras, confusão mental e perda da autonomia no dia a dia.
“Nosso estudo acaba comprovando que a educação, que é um fator social, tem um impacto maior no Brasil [no desenvolvimento da demência] do que idade ou sexo, diferentemente do que acontece na Europa e nos Estados Unidos”, explica ao g1 Wyllians Borelli, professor do Departamento de Ciências Morfológicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“Conseguimos mostrar que a determinante social tem, sim, total influência na cognição e na independência do indivíduo”, diz.
Essa conclusão é fundamental para incentivar políticas públicas e investimentos sociais, reforçam os cientistas.
Observação: Em países mais igualitários, é difícil obter dados para analisar o impacto da educação no desenvolvimento cerebral. Já no Brasil, a discrepância social é tamanha que possibilita a comparação entre um grupo mais escolarizado e outro que teve menos oportunidades.
Há quase 10 milhões de jovens de 15 a 29 anos que não concluíram a educação básica, por exemplo, segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad – IBGE).
E entre os 9,3 milhões de adultos e idosos analfabetos, mais da metade (54,7%) vive na região Nordeste.
Por isso, o grupo de cientistas brasileiros insistiu na importância de estudar especificamente o cérebro do brasileiro, em vez de tomar como globais as conclusões de pesquisas em países desenvolvidos.
Por que a educação tem a ver com o declínio cognitivo?
- Aos poucos, até os 20 anos, construímos uma “reserva cognitiva”: ao praticarmos atividades que promovem nosso raciocínio (como a leitura), formamos uma espécie de “poupança”, que vai ficar armazenada no cérebro e pronta para ser usada no futuro.
- À medida que envelhecemos, o cérebro pode acumular proteínas insolúveis (como a beta-amiloide), que formam “gruminhos”. Esse processo está associado à neurodegeneração, ou seja, ao desgaste e à morte de células nervosas. É o que acontece, por exemplo, na demência.
- É a hora, então, de usar a “poupança cognitiva” que ficou guardada ao longo da vida. Ela pode retardar o aparecimento de sintomas.
“Não que estudar vá impedir o acúmulo das proteínas. Imagine o mesmo dano cerebral em duas pessoas: uma que estudou menos e outra que estudou mais. Na primeira, os sintomas vão aparecer antes. Na pessoa que foi mais estimulada, ela ‘aguenta’ esses danos cerebrais por mais tempo e retarda os sinais por 5, 10 anos”, diz Lucas Uglione Da Ros, doutorando em farmacologia e terapêutica pela UFRGS.
Conclusão: quando estudamos e recebemos estímulos, principalmente na infância e na juventude, nosso cérebro fica mais resistente ao declínio cognitivo e a possíveis lesões futuras.
De mais bem simplificada, é possível pensar no seguinte cenário:
- O neurônio A quer buscar uma informação no neurônio B, no qual está guardada alguma memória.
- Quem tem uma reserva cognitiva maior vai encontrar diferentes “rotas” para ir do neurônio A até o B. Se um desses caminhos for “obstruído” no envelhecimento, haverá uma alternativa para chegar ao destino.
- Em pessoas com menor reserva, pode não haver uma segunda opção de trajeto. Essa memória, então, ficará prejudicada.